O Corpo e a Cidade

Pensar o corpo dentro da cidade e a cidade que envolve o corpo é necessariamente pensar como ambos se constroem através das políticas vigentes e das condições sociais. A dança (informal, tradicional, de rua, urbana) é simultaneamente corpo, espaço, celebração, protesto e resistência. É fruto das contingências de onde se vive, das necessidades de cada pessoa ou grupo, e dos processos económicos e sociais de cada tempo.

Em 2007, no final da licenciatura que completei em Arquitetura, escrevi uma tese sob o título (Etni)cidade – Tipos habitacionais existentes no bairro do Alto da Cova da Moura – caracterização e qualificação, orientada pela Profª Isabel Raposo com colaboração do Moinho da Juventude. Fiz entrevistas e desenhos (plantas e alçados) das habitações, que foram entregues aos donos/habitantes/construtores das mesmas. A sua formalização em papel não as tornou mais reais, mas como a tradição oral existe sem necessitar de registo, se fossem destruídas sem documentação ficaria apenas a memória, até que nem a memória restaria. A preservação do património construído é uma das bases da construção da identidade coletiva, e parece-me importante pensar o que define, e quem define, o que é património e porquê. Se a conservação define a importância de um edifício, essa escolha determina à partida o que ficará registrado na história e as referências para as gerações futuras. Define, portanto, o que é relevante, sendo que o que não é considerado importante desaparecerá sem registo, e isto pode ser manipulado por forma a escrever apenas uma parte da história, que será sempre uma versão da realidade, porque há inevitavelmente uma seleção do que interessa manter ou esquecer.

As danças de cariz informal nascem como as casas que um dia estudei, vão nascendo consoante a necessidade, respondem ao momento em que vivem, às políticas impostas, às restrições a que os corpos estão sujeitos, aos espaços de liberdade e opressão, ao que está disponível, e vão-se alterando a cada nova possibilidade.

No início do século XVI, em Lisboa dançava-se o Lundum, o batuque e a charamba. Estas danças foram trazidas por marinheiros e pessoas escravizadas de origem africana, e tinham muita popularidade nas ruas de Lisboa até ao século XVIII. “Os termos utilizados com referência à dança do Lundum eram ‘bater’ ou ‘riscar’, com movimentos (considerados) sensuais de aproximação do ventre, a umbigada. Existe uma possibilidade de que as primeiras versões do fado que eram dançadas tenham a sua origem no lundum. […] Algumas destas danças de origem africana tinham nomes curiosos como Canário, Guinéu ou Charamba, a Fofa, o Sarambeque, para além de Lundum e Fado”[1].

As migrações, muitas vezes forçadas, e a vivência da rua boémia e da cidade sempre originaram danças e música. Normalmente eram proibidas, esquecidas ou alteradas, e passavam de um contexto informal e de rua para um contexto elitista e dentro dos parâmetros considerados aceitáveis.

Em julho de 1974, três meses após o fim do Estado Novo, pela “Lei da Descolonização”, Portugal reconheceu o direito dos povos dos territórios colonizados à autodeterminação. Esta parte da história determina em muito a cidade de Lisboa, os corpos na cidade e o meu corpo também. Em 1975, a minha mãe chega a Portugal vinda de Luanda, sozinha com a minha tia. O meu pai chega depois.

A natureza das políticas adotadas e as suas consequências afetaram muito, e até hoje, as populações afrodescendentes, assim como populações migrantes de diversas origens, que chegam às cidades e encontram uma forte marginalização social e residencial. Isto acontece também no espaço metropolitano de Lisboa. Estas áreas, que crescem e se alteram constantemente, propiciaram desde a década de 1980 outro cruzamento que veio a fazer parte de mim, através das culturas urbanas nascidas nos Estados Unidos da América. Fruto da resistência e sobrevivência das comunidades afro-latino-americanas nos subúrbios das grandes cidades, foram criadas música e dança, que circularam primeiro em VHS e K7, depois via internet, e posteriormente através de filmes, livros, viagens e intercâmbio cultural direto, até ocuparem o seu espaço em diversas cidades por todo o mundo, como em Lisboa.

É interessante pensar como toda a diáspora se conecta e se interliga através da identificação coletiva, ainda que espalhada pelo mundo.

Em Lisboa houve e há cruzamentos de linguagens próprias, que se podem desenvolver, estudar, potencializar, e são únicos. Há uma história que se conta através dos corpos que habitam os espaços informais e, agora, os ecrãs do telemóvel, como palco em autogestão. Há potência no discurso do corpo que dança, não moldado unicamente pela academia branca ocidental; há potência nos cruzamentos que se criam pela coabitação de corpos diferentes, de histórias diferentes, de pessoas que não se querem iguais mas se respeitam e se orgulham das suas heranças. Há potência no cruzamento entre o informal (que cada vez mais se escreve, como os desenhos das casas) e a formalidade do estúdio de dança, do espaço performativo e formativo. A formalização solidifica mas não tem de congelar. Estas danças são vivas e sempre mutáveis, mutantes, em transformação.

Na década de 1980, o Hip Hop tomou conta. Como cultura urbana considera-se que é composto por cinco vertentes: dança, grafitti, mcing, DJ e knowledge. O breakdance, nascido na Costa Este dos EUA, foi a primeira manifestação da dança. A ele juntaram-se o Popping e o Locking, que surgiram na Costa Oeste, e estes três estilos são hoje considerados old school. Falamos hoje em danças urbanas, danças de rua, clubbing, ballroom, e ao olhar de fora cada um destes universos pode ser considerado semelhante e até pode ser confundido. Por vezes estes termos são utilizados incorretamente e associados a uma geografia única, quando há danças de rua específicas de cada país e mesmo de cada cidade por todo o mundo. Em 1999 comecei o meu estudo em danças do Norte de África e Médio Oriente e a partir de 2003 mergulhei na magia das danças urbanas afro-norte-americanas.

Ao procurar que manifestações teriam sido estas em Lisboa em décadas anteriores, por forma a entender as influências constantes dos encontros e das diásporas, vejo que a maior parte das danças denominadas urbanas ou de rua que existem em Lisboa desde finais do século XX estão diretamente ligadas à história colonial e à construção da cidade. Estas danças, como manifestação cultural e social, de celebração, de resistência, de emancipação, de luta, de questionamento e subversão, de criação de códigos, de criação artística e de discurso, não têm tido o espaço e a atenção devida. Têm sido apenas curiosidade e exotismo. A herança negra e a do povo de etnia cigana no fado dançado e no flamenco vizinho fazem parte destas heranças históricas, e urge investigar e recuperar, pois têm sido continuamente apagadas.[2] Para entender melhor a realidade de hoje é urgente ir um pouco mais atrás, anos, décadas, séculos, e criar pontes e paralelismos que nos permitam criar uma nova versão e história.

Ainda dentro da cultura afro-norte-americana, surge mais recentemente na cidade o Krump, o Lite Feet, o Turfin, entre outras; dentro da cena clubbing, já não na rua mas ainda dentro do contexto urbano, existe o House como manifestação maior de uma herança ritual e fusão absoluta de danças de origem africana, latinas e até europeias (referência ao Ballet e à influência do sapateado irlandês na construção do sapateado americano). Entre o Disco e o House surge o Waacking, resistência pura através da celebração, e hoje inicia-se com um atraso de vinte anos em relação ao resto da Europa, uma comunidade Ballroom, onde se insere o Vogue, por uma população jovem, negra, lgbtqia+, portuguesa e não portuguesa que reside na cidade e a altera.

Outras danças ocupam a periferia de Lisboa e até as escolas de dança não académicas, como o Kuduro (de Angola) e o Afro House (com origem na África do Sul) e tantas outras que ficam a faltar.

A história das danças de rua em cada cidade estará sempre indissociável da história política a cada tempo, da interculturalidade, das gerações que procuram a descolonização do corpo, dos territórios e da linguagem, o fim da segregação, do racismo, e a resiliência na manutenção dos seus códigos culturais, música, dança e práticas sociais. Temos Capoeira, o nosso Carnaval tem Blocos, Samba, e Lisboa hoje é presenteada com Forró, Funk e corpos jovens, artistas, negros e brancos, feministas, travestis, trans, corpos que fugiram de um clima político opressor, machista e racista, na procura de um espaço mais livre e seguro, que nem sempre se apresenta como tal. O Brasil existe bem vivo e presente aqui. A cidade muda outra vez, porque o corpo da cidade é um corpo híbrido, vivo.

O território não é mais o que dita de onde somos e os espaços que ocupamos, assim como a família formal não é mais obrigatoriamente quem nos abriga como sítio de pertença. As danças que brevemente mencionei aqui trazem com cada uma delas uma história profunda, longa, ancestral. São a escrita sem palavras de uma história, como as casas e a cidade. São importantes, essenciais e têm de ter espaço, mais espaço, mais apoio e maior visibilidade.

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[1] Ver Infopédia, entrada relativa a lundum: https://www.infopedia.pt/$lundum.

[2] Ver o documentário “Gurumbé. Canciones de tu memoria negra”, de Miguel Ángel Rosales.

in Coreia #6